Os tribunais judiciais brasileiros multiplicaram, na última década, o uso do que suas administrações chamam de mutirão. Por meio de mutirões pretendem resolver situações agudas de acumulação de serviço e de procedimentos inoperantes ou de reduzida eficácia, ou mesmo omissões do poder público, passíveis de suprimento. Assim, dentre outros, sucedem-se:
(a) mutirões cartorários, quando há número inaceitável de processos judiciais paralisados ou com lenta tramitação; (b) mutirões em juizados do consumidor, quando se avoluma o número de demandas de usuários dirigidas a concessionárias ou outros prestadores de serviços de massa; (c) mutirões carcerários, quando se verifica que permanecem presas pessoas que já teriam cumprido as suas respectivas penas; (d) mutirões de conciliação, quando se presume que grande número dos litígios de consumo poderia ser resolvido mediante acordo entre os litigantes; (e) mutirões da cidadania, quando se mobilizam meios para regularizar atos da vida civil de populações carentes, tais como a expedição de documentos pessoais, exames de saúde e a realização de casamentos coletivos.
Como esses mutirões se repetem periodicamente e sobre os mesmos objetos, a demonstrar que não se modificam as condições que dão azo à sua prática, a indagação que se impõe é a de saber se o mutirão pode ser tido, ou não, como ferramenta eficiente de gestão judiciária, entendida gestão em sua acepção técnico-administrativa de gerir meios para a consecução de resultados do interesse da organização, seja esta uma empresa privada ou uma entidade pública. Lançando um olhar prospectivo sobre o conceito, Peter Drucker vaticinava que “O centro de uma sociedade, economia e comunidade modernas não é a tecnologia, nem a informação, tampouco a produtividade. É a instituição gerenciada como órgão da sociedade para produzir resultados. E a gerência é a ferramenta específica, a função específica, o instrumento específico para tornar as instituições capazes de produzir resultados. Isto, porém, requer um novo paradigma gerencial final: a preocupação da gerência e sua responsabilidade é tudo o que afeta o desempenho da instituição e seus resultados, dentro ou fora, sob o controle da instituição ou totalmente além dele” (Desafios Gerenciais para o Século XXI, trad. Nivaldo Montingelli Jr., p. 41. Ed. Pioneira Thomson Learning Ltda., São Paulo, 2001).
A resposta sobre a eficácia do mutirão como ferramenta de gestão judiciária de resultados é rica de matizes, mas tende a ser negativa, sem embargo do reconhecimento de que um mutirão pode trazer conforto imediato para aqueles que se beneficiam de sua intervenção pontual e temporária. Assemelhar-se-ia, perdoada a precariedade da comparação, ao analgésico que atua sobre o sintoma da doença sem alcançar-lhe as causas, por isto que não a cura, embora alivie a dor até que novo surto advenha do mal que permanece.
Há mais, porém e infelizmente. O mutirão, na medida em que “institucionalizado”, constitui uma contradição nos próprios termos e produz desvios de que decorrerão outros problemas de gestão, que se somam àqueles que o mutirão pretenderia conjurar.
O primeiro passo das reflexões que iluminariam a resposta deve ser o da compreensão acerca das raízes e do fio condutor da figura do mutirão.
O etmo da palavra é plúrimo, como faz ver Clóvis Caldeira (Mutirão — formas de ajuda mútua. Companhia Editora Nacional, São Paulo, 1958). Seu fundamento é a solidariedade social. Caracteriza-se por constituir uma assistência mútua espontânea, informal e em princípio gratuita. A bibliografia sobre a matéria vê no mutirão, tal como aculturado no Brasil, “uma convergência de hábitos culturais afins daquelas três origens [indígena, africana e européia, mormente portuguesa]… O caráter festivo que acompanha e sobretudo coroa tais ajudas mútuas é ressaltado por Saint Hilaire (1779-1853), na sua estada no Brasil de 1816 a 1822, quando de passagem por Boa Vista, MG, a propósito do término de uma derrubada da mata para plantação, descrevendo o processo do mutirão… Na tradição portuguesa, manifesta-se em vários pontos, como nos adjuntos minhotos (repartição d’água às sementeiras, reparos nas igrejas); como em certos tipos de organização comunitária, com os pastos e rebanhos em comum (as vezeiras); em Braga e Viana do Castelo, o rogar aos vizinhos para vindimas, sachas, malhas, ceifas, esfolhadas, ripadas… Na África, a ajuda mútua apresenta-se quando do forte processo de decadência por influxo da colonização… as sociedades tribais são como cooperativas de construção de casas, estradas, caminhos, derrubadas de mata e afins… no Brasil, os negros aquilombados parecem ter revivido as práticas cooperativas de sua tradição africana”.
Em comunidades das periferias urbanas brasileiras contemporâneas, é prática conhecida a de vizinhos e amigos se reunirem para ajudar, em fins de semana e feriados, na edificação da cobertura de uma casa em construção, culminando o mutirão no festejar da chamada “laje batida”, em que todos, ao final, se confraternizam em um churrasco comemorativo. Seria incompatível com o espírito informal e amador do mutirão que qualquer dos partícipes perguntasse ao dono da casa se há projeto de engenharia obediente às posturas municipais, aprovado e licenciado, a garantir a legalidade e a solidez da edificação. Simplesmente faz-se a laje, irrelevante o que ocorrerá após.
A sociologia norte-americana também registra o tema. Descreve que “A cooperação informal é comum no seio de famílias, vizinhanças e outros grupos, cujos membros mantêm contatos associativos próximos… Agricultores vizinhos sempre acharam vantajoso trabalhar desta forma para seu bem mútuo… Construção de galpões e mutirões de trabalho são exemplos, nos primórdios da vida comunitária deste país, das formas que a cooperação informal pode tomar. Mesmo com a mecanização, a cooperação informal ainda é relativamente comum em muitas áreas agrícolas… Parece, contudo, haver pouca dúvida de que a boa vizinhança não é mais o que era e que a cooperação informal entre as famílias dos agricultores diminui consideravelmente nos últimos anos” (Sociologia Rural, Alvin L. Bertrand e associados, trad. AlzemiroSturn, p. 358-359. Ed. Atlas, São Paulo, 1973).
A existência de grupos informais na organização empresarial tem igualmente merecido a atenção dos especialistas, que neles divisam virtudes e malefícios para a empresa. Baseiam-se “sempre em relações de simpatia de intensidade menor (alguns interesses comuns), ou maior (amizade), e não surgem, ou só casualmente, das relações de trabalho como tais… são sempre pequenos e sua coesão repousa em tais relações. Assim, falar da organização informal da empresa industrial torna-se equívoco em dois sentidos, porquanto se trata aqui, sempre, primeiramente, de formação de grupos particulares, alguns dos quais podem, sem dúvida, estar entrelaçados entre si através das ‘pessoas-chave’ que são membros de diversos grupos, porém cujo conjunto só raramente proporciona uma visão de estrutura coerente da empresa inteira. Em segundo lugar porque somente se pode considerar uma ‘organização’ de grupos informais em sentido figurado; aliás, o que os distingue é a característica de serem mesmo insuscetíveis de serem organizados… Os grupos informais revelam, enfim, a dupla face da estrutura social das organizações: a contiguidade de integração e coação, o funcionamento equilibrado e o conflito” (A. Delorenzo Neto, Sociologia Aplicada à Administração, p. 99-100. Ed. Atlas, São Paulo, 1972).
O mutirão chegou ao Supremo Tribunal Federal em 2008, quando foi lançado o denominado “Mutirão Carcerário”, por meio do qual se passou a fazer, a cada ano, a revisão da execução das sentenças condenatórias criminais em todo o país. Ao prestar contas dos resultados obtidos, o então presidente da Corte, ministro Cezar Peluso, informou que “21 mil pessoas que estavam ilegalmente presas foram libertadas entre 2010 e 2011. O mutirão custou R$ 3,2 milhões e envolveu 246 magistrados e servidores, que fizeram mais de 900 viagens pelo país… Além das libertações, foram concedidos mais de 41 mil benefícios a que os presos tinham direito, como progresso de regime de cumprimento de pena ou livramento condicional” (www1.folha.uol.com.br, acessado aos 29.11.12).
Percuciente a análise do ministro Peluso: “O programa perdeu o caráter de mutirão, apesar de conservamos o nome, e é hoje um trabalho sistemático que tem por função diagnosticar o sistema da justiça criminal brasileira… Elogiável a iniciativa do Ministério da Justiça, que anunciou o repasse de R$ 1,1 bilhão aos estados para a ampliação de vagas no sistema prisional, com o objetivo de zerar o déficit de vagas em presídios femininos e diminuir o número de presos provisoriamente em delegacias. A destinação do recurso em si é um fato que merece louvor, mas não será suficiente se o sistema não se aperfeiçoar…” (idem, ibidem).
Eis o ponto nevrálgico: o mutirão, porque providência pontual e paliativa por definição, não chega à causa sistêmica que produz o problema a ser resolvido. A só transmutação de rótulo — de mutirão, eventual, a programa, oficial — não altera a natureza das coisas se não se aperfeiçoar o sistema (estrutura, organização, métodos e procedimentos) em que se inserem os fatos geradores da necessidade do mutirão. Sentido algum haveria, para uma gestão judiciária de resultados, em que presos com a pena excedida ficassem a aguardar por um mutirão para terem o direito à liberdade reconhecido. Este deve ocorrer como resultado de uma gestão permanente da execução das penas, de sorte a que se solte prontamente aquele que a cumpriu, não havendo motivo outro para permanecer custodiado. O mesmo raciocínio deve presidir a gestão que identifique qualquer outro sintoma de anomalia no funcionamento de um sistema, insuscetível de eliminar-se com a só reiteração de mutirões.
Conclui-se, sistematizando conceitos em tese:
I — mutirão, à vista de seu etmo e da praxis de seu vetusto uso, consiste em uma ação voluntária informal, não remunerada, fundada na solidariedade social e sem sustentação técnica, destinada a atender a interesse pontual e transitório que determinada comunidade considere relevante para a satisfação de necessidades localizadas de um ou mais de seus membros, em específico contexto histórico, econômico e cultural;
II — em face desse perfil, o mutirão não se afeiçoa a instrumento de gestão a ser manejado por organizações formais, públicas ou privadas, para acudir a objetivos estruturais permanentes;
III — o fato de organizações formais, como a dos tribunais judiciais, se socorrerem, episodicamente, de mutirões significa, em tese, a admissão, por seus gestores, de que situações geradoras de intensos efeitos negativos estão a comprometer as finalidades institucionais da organização, por isto devendo receber resposta imediata enquanto se concebem e implementam soluções estruturais que as resolverão em definitivo, de modo a tornar desnecessários ou ociosos futuros eventuais mutirões pelo mesmo motivo;
IV — a inclusão de mutirões entre os procedimentos rotineiros de organizações formais, públicas ou privadas, significará, sempre, a incapacidade desta — por razões endógenas ou exógenas, ou ambas — para, observados os padrões vigentes, eliminar as disfunções que os criam e alimentam, deixando claro que esses padrões deveriam ser revistos e alterados porque insuficientes, deficientes, inadequados ou ineficazes;
V — a repetição de mutirões, na medida em que se prolongue no tempo e nas práticas da organização formal, pública ou privada, tende a produzir as suas próprias disfunções, dentre as quais: (i) perenizar as situações que supostamente justificam a realização de mutirões, de sorte a estimular a acomodação, obstruir a correção de impropriedades estruturais, bem como de erros de postura gerencial, a par de retardar a busca por novos padrões e melhores práticas; (ii) aparentar que os problemas atacados em mutirão estarão resolvidos mesmo que as causas sistêmicas dessas dificuldades não hajam sido alcançadas, irrelevante que continuarão a fazer mais vítimas até que novos mutirões ocorram, em círculo vicioso interminável, comprometedor da credibilidade da organização; (iii) num primeiro ciclo, agentes, profissionais ou não, participarão dos mutirões de modo espontâneo e gratuito, tendo a movê-los o cumprimento de ordens superiores, o desejo de colaboração ou mesmo o de, talvez, expiar culpas inconscientes, mas, em momento posterior, esses agentes desenvolverão a expectativa de recompensa remuneratória do esforço extra exigido pelo mutirão — o que se compreende —, e a organização acabará por instituir gratificação que lhe corresponda; (iv) tal gratificação oficializada reforçará a aparência de que, do ponto de vista da burocracia, a questão está resolvida e poucos ousarão formular a embaraçosa indagação sobre a prioridade da organização: eliminar as causas que justificam os mutirões, a estes dando fim e precatando, doravante, os dramas vividos por suas vítimas, sem exclusão, ou ignorar as causas porque os mutirões passaram a todos interessar, como atividade remunerada?
Na ordem econômico-administrativa japonesa, tornou-se notório o cânone de somente aprovarem-se programas de governo que invistam nas causas dos problemas identificados, recusando-se qualquer investimento apenas nos efeitos.
É hora de a gestão judiciária brasileira meditar sobre os efeitos que os mutirões estarão produzindo no seio da organização judicial e em sua imagem externa, nos sentimentos e nos propósitos de seus gestores e agentes, no cumprimento, enfim, de sua missão institucional.
Jessé Torres Pereira Junior é desembargador do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, professor da Escola da Magistratura do Rio de Janeiro e coordenador de seu curso de pós-graduação em Direito Administrativo.
Revista Consultor Jurídico, 7 de dezembro de 2012