Consolidada do ponto de vista legal, respaldada pelo Judiciário e bem recebida pelas empresas, a arbitragem pavimentou o caminho do crescimento econômico trilhado pelo país na última década e, com ajustes, pode facilitar os grandes investimentos em infraestrutura e projetos ainda necessários para o país, como aqueles previstos para a Copa do Mundo de 2014 e a Olimpíada de 2016. Essa é a avaliação sobre a justiça privada que emergiu do seminário organizado pelo Valor, “Arbitragem e Segurança Jurídica no Brasil”, realizado dia 28 de novembro, em São Paulo. O evento avaliou os pontos de destaque na história da arbitragem ao longo dos últimos anos, mostrou sua importância para a criação de um ambiente de negócios saudável e apontou novos rumos para seu aprimoramento e expansão – como sua utilização para solucionar disputas sobre licitações públicas.
Os benefícios apontados pelos palestrantes como decorrência da consolidação da arbitragem, quinze anos depois de sua instituição em lei, incluem a viabilização de um mercado de capitais com alto grau de governança, a redução da percepção de risco do país entre investidores estrangeiros e a inclusão do Brasil no mapa do grande capital internacional.
Com um Judiciário ainda lento, abarrotado de processos, e sem perspectivas de melhora no curto prazo – como admitem os presidentes dos dois principais tribunais do país -, o Brasil precisa contar com as fórmulas alternativas de solução de conflitos se quer oferecer condições mínimas para a realização de negócios no país.
O ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Gilmar Mendes defendeu no seminário uma maior utilização da arbitragem para escapar à forma mais tradicional, e hoje ineficaz, de solução de controvérsias: o Judiciário. Segundo o ministro, são claros os déficits nos serviços públicos no Brasil, a despeito dos esforços de reforma do Estado nos últimos anos, e a prestação jurisdicional se inclui nesse quadro.
O modelo brasileiro de organização política e social demanda muito da Justiça, na avaliação do ministro. E no contexto de ascensão social de novas classes e sua inserção na economia, a tendência é esse quadro se intensificar. Há em tramitação no país 80 milhões de processos, o que significa uma ação para cada três pessoas: “As disputas mais comezinhas, as brigas de vizinhos, vão todas parar na Justiça”, diz Mendes. Para o ministro, é preciso de uma mudança institucional e cultural no sistema, é necessário pensar em modelos alternativos – daí a importância da arbitragem.
No contexto da criação de um ambiente de segurança jurídica, Gilmar Mendes demonstrou sua preocupação com a questão das guerras de liminares em processos de licitação altamente complexos, algo que no passado ele chegou a definir como “manicômio judiciário”. “Fico a pensar que um modelo de arbitragem poderia ser ideal para isso, para se criar um ambiente de segurança”, disse o ministro.
Quando há obras que precisam ser concluídas em tempo definido – como é o caso dos preparativos para Copa do Mundo, ou das megaobras no setor de energia – o caso é mais grave, e o ministro sugere o estudo de fórmulas que possam evitar a suspensão do andamento da construção ou dos processos licitatórios, baseado no próprio interesse público.
Gilmar Mendes lembrou que no contexto da reforma do Judiciário houve conflitos sérios em torno da arbitragem, como a apresentação de uma emenda constitucional destinada a vetar o uso da arbitragem para órgãos do setor público. Como essa emenda não foi incluída, o uso da arbitragem pelo setor público, se não foi proibido, foi autorizado pelo “silêncio eloquente” da legislação.
Mendes diz que ainda há entre os juízes um “cacoete” para recusar, em princípio, qualquer cláusula que lhe retire o poder jurisdicional, uma cultura judicialista. “Ainda não há um ethos judicial pelo reconhecimento da arbitragem”, diz. A Justiça não pode ser feita a qualquer custo” – ou seja, independentemente de quanto tempo ela leve para ser feita – defende. E, apesar de a Justiça brasileira ser profissional, com quadros altamente qualificados e métodos transparentes de seleção, ainda falta especialização das cortes para certos tipos de demandas, o que também atrapalha a boa prestação jurisdicional no país – com decisões à altura de disputas mais complexas, avalia o ministro.
O advogado Modesto Carvalhosa apresentou uma visão mais otimista da história da arbitragem no Brasil até o momento, identificando a instituição de uma boa legislação e o respeito do Judiciário às decisões arbitrais. O único problema que persiste, em sua avaliação, é a questão da execução das sentenças proferidas pela arbitragem, que devem ser encaminhadas à Justiça – e lá enfrentam o problema geral de assoberbamento do Judiciário.
No Superior Tribunal de Justiça (STJ), diz Carvalhosa, há uma jurisprudência “excepcional” sobre a arbitragem, com precedentes que abrangem todos os aspectos do tema, decisões relevantes que confirmam a competência do instituto. Hoje, há no Brasil o pleno cumprimento do código legislativo referente à arbitragem, e o país subscreveu todos os tratados internacionais relevantes que respaldam seu funcionamento – com destaque para a Convenção de Nova York, assinada em 2002, lembrou o advogado. Há o pleno respaldo à competência dos tribunais arbitrais, assegurada pelo STF – com destaque para o julgamento que declarou a constitucionalidade da lei da arbitragem, em 2001 – e em precedentes julgados tanto pelo STJ como pelos tribunais locais.
Carvalhosa também ressaltou o aprimoramento das câmaras de arbitragem brasileiras, com quadros competentes, experientes e com profissionais de qualidade, o que ajuda a atrair mais partes interessadas em adotar o instrumento. Tanto no Brasil quanto no exterior, o número de procedimentos instalados aumenta. A Câmara de Comércio Internacional, uma das principais instituições de arbitragem do mundo, contabilizou em 2005 o total de 35 partes brasileiras em procedimentos arbitrais, número que passou para 86 em 2009.
A Justiça brasileira, em uma comparação com indicadores internacionais, não deixa a tanto a desejar, segundo dados apresentados por Carvalhosa: o World Justice Project, uma organização sediada em Washington e bancada por órgãos multilaterais e entidades de classe, colocou o Brasil em segundo lugar em um ranking de segurança jurídica na América Latina – atrás apenas do Chile. Mundialmente, o país ficou com o 24º lugar – pouco atrás dos EUA, em 21º lugar.
O ministro Gilmar Mendes fez uma raciocínio na mesma linha ao apontar que o problema brasileiro não é a falta de autonomia do Judiciário, que é profissionalizado e possui pouco grau de interferência política. “Entre os Brics, o Brasil é considerado um país com instituições sérias e Justiça independente”, diz Gilmar.
Presidente do STJ, o ministro Cezar Asfor Rocha fez uma espécie de autocrítica do Judiciário, afirmando que, a despeito da receptividade do instrumento pelo tribunal, ainda não há entre os juízes uma cultura da solução de conflitos por outros meios que não a Justiça – alternativas que incluem mediação, conciliação e arbitragem. Mas houve no Brasil, de acordo com ele, um despertar para a arbitragem, trazido em grande parte pelos princípios do chamado “Consenso de Washington”, que preconiza a criação de um ambiente favorável à iniciativa privada, e foi responsável pela criação dos princípios da reforma do Judiciário.
Para mostrar o arrefecimento da resistência dos magistrados, Asfor Rocha lembrou que nas decisões já proferidas em favor da arbitragem, há reflexões exaustivas dos juízes para aceitar princípios que para o mercado são facilmente assimiláveis. Um dos debates levantados no STJ em torno da arbitragem, lembra Asfor Rocha, foi a necessidade de prestação de garantia – caução – para a execução de uma sentença arbitral estrangeira. Também houve debate para se aceitar o princípio da vinculação tácita – não expressa – da arbitragem, e foi necessário o posicionamento do STJ para se pacificar a discussão sobre a aplicação da arbitragem a empresas estatais e de economia mista.
O conflito de competência entre câmaras arbitrais distintas ainda deve ser resolvido pelo juízo de primeira instância – algo que, defende o ministro, deveria ser decidido exclusivamente pelo STJ para se garantir a segurança jurídica. Asfor Rocha também observa que a Justiça brasileira deve discutir melhor o tema da fronteira entre o direito público e o privado no campo da arbitragem, debatendo a utilização do instrumento para resolver disputas na área trabalhista, ambiental, consumo e falências.
A utilização da arbitragem como uma forma de desafogar o Judiciário – retirando do poder público a necessidade de resolver certas disputas entre empresas, também foi objeto de debate no evento. O consenso, entretanto, apontou que esse não é o melhor argumento em favor da expansão da arbitragem no país. O maior benefício é mesmo a melhora da segurança jurídica, garantindo decisões mais céleres e precisas para disputas sobre temas complexos.
“A arbitragem não chega a desonerar o Judiciário em grande escala, mas serve para ajudar a resolver demandas com peculiaridades específicas”, diz Gilmar Mendes. Há casos de demandas contratuais que não são resolvidas, e nem mesmo levadas à Justiça, porque não há uma previsão de solução. Nesse sentido, mesmo sem atingir um grande número de processos, a arbitragem também contribui para se fazer Justiça, diz o ministro. Modesto Carvalhosa endossa a posição: “Há um universo de milhares de contratos que não vão ao Judiciário. Nesse sentido, a jurisprudência do STF e do STJ em favor da arbitragem contribui para a segurança Jurídica”.
Asfor Rocha considerou que a instituição da arbitragem não constitui um tema de massas – por ano, entram no Brasil 20 milhões de novas ações -, mas é relevante para os proprietários do capital, e favorável ao país no sentido de construir uma imagem de um lugar que respeita contratos.
Demonstrando a escala das disputas que chegam regularmente ao Judiciário – e a dificuldade em se solucionar o problema -, Gilmar Mendes contou sua experiência no período em que se discutia o projeto de instalação dos Juizados Especiais Federais, órgãos destinados à solução de pequenas causas contra o governo federal. Na época, começo dos anos 90 estimou-se que os juizados receberiam de 180 mil a 200 mil processos, tomando-se como base o número de disputas então presentes na Justiça Federal. Em pouco tempo, contudo, o volume de ações chegou a 2,5 milhões de processos. “Não conseguimos avaliar a dimensão da demanda reprimida”, contou o ministro.
Fonte: Portal do Empresário Contábil